domingo, 20 de fevereiro de 2011

Bullying - comportamento agressivo entre estudantes

J Pediatr (Rio J). 2005;81(5 Supl):S164-72

Introdução

A violência é um problema de saúde pública importante e crescente no mundo, com sérias conseqüências individuais e sociais (1-4), particularmente para os jovens, que aparecem nas estatísticas como os que mais morrem e os que mais matam (5).

Hoje em dia, é consenso que a violência pode ser evitada, seu impacto minimizado e os fatores que contribuem para respostas violentas mudados. Segundo Debarbieux & Blaya (6), não se trata de uma questão de fé, mas de uma afirmação baseada em evidências. Exemplos bem sucedidos podem ser encontrados em todo o mundo, desde trabalhos individuais e comunitários em pequena escala, até políticas nacionais e iniciativas legislativas.

Uma das formas mais visíveis da violência na sociedade é a chamada violência juvenil, assim denominada por ser cometida por pessoas com idades entre 10 e 21 anos (7,8). Grupos em que o comportamento violento é percebido antes da puberdade tendem a adotar atitudes cada vez mais agressivas, culminando em graves ações na adolescência e na persistência da violência na fase adulta (4,7,9,10).

Quando abordamos a violência contra crianças e adolescentes e a vinculamos aos ambientes onde ela ocorre, a escola surge como um espaço ainda pouco explorado, principalmente com relação ao comportamento agressivo existente entre os próprios estudantes. A violência nas escolas é um problema social grave e complexo e, provavelmente, o tipo mais freqüente e visível da violência juvenil (9,11-13).

O termo "violência escolar" diz respeito a todos os comportamentos agressivos e anti-sociais, incluindo os conflitos interpessoais, danos ao patrimônio, atos criminosos, etc. Muitas dessas situações dependem de fatores externos, cujas intervenções podem estar além da competência e capacidade das entidades de ensino e de seus funcionários. Porém, para um sem número delas, a solução possível pode ser obtida no próprio ambiente escolar.

O comportamento violento, que causa tanta preocupação e temor, resulta da interação entre o desenvolvimento individual e os contextos sociais, como a família, a escola e a comunidade. Infelizmente, o modelo do mundo exterior é reproduzido nas escolas, fazendo com que essas instituições deixem de ser ambientes seguros, modulados pela disciplina, amizade e cooperação (3), e se transformem em espaços onde há violência, sofrimento e medo.

bullying

Estudos sobre as influências do ambiente escolar e dos sistemas educacionais sobre o desenvolvimento acadêmico do jovem já vêm sendo realizados, mas é necessário também que tais influências sejam observadas pela ótica da saúde.

A escola é de grande significância para as crianças e adolescentes, e os que não gostam dela têm maior probabilidade de apresentar desempenhos insatisfatórios, comprometimentos físicos e emocionais à sua saúde ou sentimentos de insatisfação com a vida. Os relacionamentos interpessoais positivos e o desenvolvimento acadêmico estabelecem uma relação direta, onde os estudantes que perceberem esse apoio terão maiores possibilidades de alcançar um melhor nível de aprendizado (14). Portanto, a aceitação pelos companheiros é fundamental para o desenvolvimento da saúde de crianças e adolescentes, aprimorando suas habilidades sociais e fortalecendo a capacidade de reação diante de situações de tensão (15).

A agressividade nas escolas é um problema universal (3,9). O bullying e a vitimização representam diferentes tipos de envolvimento em situações de violência durante a infância e adolescência. O bullying diz respeito a uma forma de afirmação de poder interpessoal através da agressão. A vitimização ocorre quando uma pessoa é feita de receptor do comportamento agressivo de uma outra mais poderosa. Tanto o bullying como a vitimização têm conseqüências negativas imediatas e tardias sobre todos os envolvidos: agressores, vítimas e observadores (16).

Por definição, bullying compreende todas as atitudes agressivas, intencionais e repetidas, que ocorrem sem motivação evidente, adotadas por um ou mais estudante contra outro(s), causando dor e angústia, sendo executadas dentro de uma relação desigual de poder (3,11). Essa assimetria de poder associada ao bullying pode ser conseqüente da diferença de idade, tamanho, desenvolvimento físico ou emocional, ou do maior apoio dos demais estudantes (3,11,17).

Trata-se de comportamentos agressivos que ocorrem nas escolas e que são tradicionalmente admitidos como naturais, sendo habitualmente ignorados ou não valorizados, tanto por professores quanto pelos pais.

A adoção universal do termo bullying foi decorrente da dificuldade em traduzi-lo para diversas línguas. Durante a realização da Conferência Internacional Online School Bullying and Violence, de maio a junho de 2005, ficou caracterizado que o amplo conceito dado à palavra bullying dificulta a identificação de um termo nativo correspondente em países como Alemanha, França, Espanha, Portugal e Brasil, entre outros (18).

As pesquisas sobre bullying são recentes e ganharam destaque a partir dos anos 1990, principalmente com Olweus, 1993; Smith & Sharp, 1994; Ross, 1996; Rigby, 1996 (3). Estudos indicam que a prevalência de estudantes vitimizados varia de 8 a 46%, e de agressores, de 5 a 30% (3,19).

A escola é vista, tradicionalmente, como um local de aprendizado, avaliando-se o desempenho dos alunos com base nas notas dos testes de conhecimento e no cumprimento de tarefas acadêmicas. No entanto, três documentos legais formam a base de entendimento com relação ao desenvolvimento e educação de crianças e adolescentes: a Constituição da República Federativa do Brasil, o Estatuto da Criança e do Adolescente e a Convenção sobre os Direitos da Criança da Organização das Nações Unidas. Em todos esses documentos, estão previstos os direitos ao respeito e à dignidade, sendo a educação entendida como um meio de prover o pleno desenvolvimento da pessoa e seu preparo para o exercício da cidadania.

Todos desejamos que as escolas sejam ambientes seguros e saudáveis, onde crianças e adolescentes possam desenvolver, ao máximo, os seus potenciais intelectuais e sociais. Portanto, não se pode admitir que sofram violências que lhes tragam danos físicos e/ou psicológicos, que testemunhem tais fatos e se calem para que não sejam também agredidos e acabem por achá-los banais ou, pior ainda, que diante da omissão e tolerância dos adultos, adotem comportamentos agressivos.

A Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e à Adolescência (ABRAPIA) desenvolveu o Programa de Redução do Comportamento Agressivo entre Estudantes, objetivando investigar as características desses atos entre 5.500 alunos de quinta à oitava série do ensino fundamental e sistematizar estratégias de intervenção capazes de prevenir a sua ocorrência.

Apesar de o estudo ter sido realizado em pouco mais de 1 ano, de setembro de 2002 a outubro de 2003, foi possível reduzir a agressividade entre os estudantes, favorecendo o ambiente escolar, o nível de aprendizado, a preservação do patrimônio e, principalmente, as relações humanas (Tabela 1 e 2).

Tabela 1 -
Percepção dos estudantes quanto à prática de bullying nas escolas

Tabela 2 -
Percepção dos estudantes quanto à prática de bullying nas escolas

Classificação

O bullying é classificado como direto, quando as vítimas são atacadas diretamente, ou indireto, quando estão ausentes. São considerados bullying direto os apelidos, agressões físicas, ameaças, roubos, ofensas verbais ou expressões e gestos que geram mal estar aos alvos. São atos utilizados com uma freqüência quatro vezes maior entre os meninos. O bullying indireto compreende atitudes de indiferença, isolamento, difamação e negação aos desejos, sendo mais adotados pelas meninas (3,11,19-21).

Uma nova forma de bullying, conhecida como cyberbullying, tem sido observada com uma freqüência cada vez maior no mundo. Segundo Bill Belsey, trata-se do uso da tecnologia da informação e comunicação (e-mails, telefones celulares, mensagens por pagers ou celulares, fotos digitais, sites pessoais difamatórios, ações difamatórias online) como recurso para a adoção de comportamentos deliberados, repetidos e hostis, de um indivíduo ou grupo, que pretende causar danos a outro(s) (22). A vitimização através de telefones celulares foi admitida por 14 a 23% dos adolescentes entrevistados em três pesquisas (23-25).

Fatores de risco

Fatores econômicos, sociais e culturais, aspectos inatos de temperamento e influências familiares, de amigos, da escola e da comunidade, constituem riscos para a manifestação do bullying e causam impacto na saúde e desenvolvimento de crianças e adolescentes (9,21).

O bullying é mais prevalente entre alunos com idades entre 11 e 13 anos, sendo menos freqüente na educação infantil e ensino médio (14,17,26).

Entre os agressores, observa-se um predomínio do sexo masculino, enquanto que, no papel de vítima, não há diferenças entre gêneros. O fato de os meninos envolverem-se em atos de bullying mais comumente não indica necessariamente que sejam mais agressivos, mas sim que têm maior possibilidade de adotar esse tipo de comportamento. Já a dificuldade em identificar-se o bullying entre as meninas pode estar relacionada ao uso de formas mais sutis (3,14).

Considerando-se que a maioria dos atos de bullying ocorre fora da visão dos adultos, que grande parte das vítimas não reage ou fala sobre a agressão sofrida (22), pode-se entender por que professores e pais têm pouca percepção do bullying, subestimam a sua prevalência e atuam de forma insuficiente para a redução e interrupção dessas situações (19,27). A ABRAPIA identificou que 51,8% dos autores de bullying admitiram não terem sido advertidos (3). A aparente aceitação dos adultos e a conseqüente sensação de impunidade favorecem a perpetuação do comportamento agressivo.

A redução dos fatores de risco pode prevenir o comportamento agressivo entre crianças e adolescentes. Os esforços devem ser direcionados para a diminuição da exposição à violência no ambiente escolar, doméstico e comunitário, além daquela divulgada pela mídia (28).

Formas de envolvimento dos estudantes

As crianças e adolescentes podem ser identificados como vítimas, agressores ou testemunhas de acordo com sua atitude diante de situações de bullying. Não há evidências que permitam prever qual papel adotará cada aluno, uma vez que pode ser alterado de acordo com as circunstâncias (27).

A forma de classificação utilizada pela ABRAPIA teve o cuidado de não rotular os estudantes, evitando que estes fossem estigmatizados pela comunidade escolar. Adotaram-se, então, os termos autor de bullying (agressor), alvo de bullying (vítima), alvo/autor de bullying (agressor/vítima) e testemunha de bullying (3,29).

Alvos de bullying

Considera-se alvo o aluno exposto, de forma repetida e durante algum tempo, às ações negativas perpetradas por um ou mais alunos. Entende-se por ações negativas as situações em que alguém, de forma intencional e repetida, causa dano, fere ou incomoda outra pessoa.

Em geral, não dispõe de recursos, status ou habilidade para reagir ou cessar o bullying. Geralmente, é pouco sociável, inseguro e desesperançado quanto à possibilidade de adequação ao grupo. Sua baixa auto-estima é agravada por críticas dos adultos sobre a sua vida ou comportamento, dificultando a possibilidade de ajuda. Tem poucos amigos, é passivo, retraído, infeliz e sofre com a vergonha, medo, depressão e ansiedade. Sua auto-estima pode estar tão comprometida que acredita ser merecedor dos maus-tratos sofridos (3,9,11,14,22,27,30).

O tempo e a regularidade das agressões contribuem fortemente para o agravamento dos efeitos. O medo, a tensão e a preocupação com sua imagem podem comprometer o desenvolvimento acadêmico, além de aumentar a ansiedade, insegurança e o conceito negativo de si mesmo (8). Pode evitar a escola e o convívio social, prevenindo-se contra novas agressões. Mais raramente, pode apresentar atitudes de autodestruição ou intenções suicidas ou se sentir compelido a adotar medidas drásticas, como atos de vingança, reações violentas, portar armas ou cometer suicídio (25,27,31).

Algumas características físicas, comportamentais ou emocionais podem torná-lo mais vulnerável às ações dos autores e dificultar a sua aceitação pelo grupo. A rejeição às diferenças é um fato descrito como de grande importância na ocorrência de bullying. No entanto, é provável que os autores escolham e utilizem possíveis diferenças como motivação para as agressões, sem que elas sejam, efetivamente, as causas do assédio (26,29,32,33).

Embora não haja estudos precisos sobre métodos educativos familiares que incitem ao desenvolvimento de alvos de bullying, alguns deles são identificados como facilitadores: proteção excessiva, gerando dificuldades para enfrentar os desafios e para se defender; tratamento infantilizado, causando desenvolvimento psíquico e emocional aquém do aceito pelo grupo; e o papel de "bode expiatório" da família, sofrendo críticas sistemáticas e sendo responsabilizado pelas frustrações dos pais.

Nos casos em que alunos armados invadiram as escolas e atiraram contra colegas e professores, cerca de dois terços desses jovens eram vítimas de bullying e recorreram às armas para combater o poder que os sucumbia. As agressões não tiveram alvos específicos, sugerindo que o desejo era o de "matar a Escola", local onde diariamente todos os viam sofrer e nada faziam para protegê-los (3).

É pouco comum que a vítima revele espontaneamente o bullying sofrido, seja por vergonha, por temer retaliações, por descrer nas atitudes favoráveis da escola ou por recear possíveis críticas. Na pesquisa da ABRAPIA, 41,6% dos alunos alvos admitiram não ter falado a ninguém sobre seu sofrimento (3). O silêncio só é rompido quando os alvos sentem que serão ouvidos, respeitados e valorizados. Conscientizar as crianças e adolescentes que o bullying é inaceitável e que não será tolerado permite o enfrentamento do problema com mais firmeza, transparência e liberdade (11).

Autores de bullying

Algumas condições familiares adversas parecem favorecer o desenvolvimento da agressividade nas crianças. Pode-se identificar a desestruturação familiar, o relacionamento afetivo pobre, o excesso de tolerância ou de permissividade e a prática de maus-tratos físicos ou explosões emocionais como forma de afirmação de poder dos pais (3,8,21,26,27).

Fatores individuais também influem na adoção de comportamentos agressivos: hiperatividade, impulsividade, distúrbios comportamentais, dificuldades de atenção, baixa inteligência e desempenho escolar deficiente.

O autor de bullying é tipicamente popular; tende a envolver-se em uma variedade de comportamentos anti-sociais; pode mostrar-se agressivo inclusive com os adultos; é impulsivo; vê sua agressividade como qualidade; tem opiniões positivas sobre si mesmo; é geralmente mais forte que seu alvo; sente prazer e satisfação em dominar, controlar e causar danos e sofrimentos a outros. Além disso, pode existir um "componente benefício" em sua conduta, como ganhos sociais e materiais (11,21,29,34). São menos satisfeitos com a escola e a família, mais propensos ao absenteísmo e à evasão escolar e têm uma tendência maior para apresentarem comportamentos de risco (consumir tabaco, álcool ou outras drogas, portar armas, brigar, etc) (3,8,35-37). As possibilidades são maiores em crianças ou adolescentes que adotam atitudes anti-sociais antes da puberdade e por longo tempo (9,27,37).

Pode manter um pequeno grupo em torno de si, que atua como auxiliar em suas agressões ou é indicado para agredir o alvo. Dessa forma, o autor dilui a responsabilidade por todos ou a transfere para os seus liderados. Esses alunos, identificados como assistentes ou seguidores, raramente tomam a iniciativa da agressão, são inseguros ou ansiosos e se subordinam à liderança do autor para se proteger ou pelo prazer de pertencer ao grupo dominante (11).

Testemunhas de bullying

A maioria dos alunos não se envolve diretamente em atos de bullying e geralmente se cala por medo de ser a "próxima vítima", por não saberem como agir e por descrerem nas atitudes da escola. Esse clima de silêncio pode ser interpretado pelos autores como afirmação de seu poder, o que ajuda a acobertar a prevalência desses atos, transmitindo uma falsa tranqüilidade aos adultos (3,27).

Grande parte das testemunhas sente simpatia pelos alvos, tende a não culpá-los pelo ocorrido, condena o comportamento dos autores e deseja que os professores intervenham mais efetivamente (38,39). Cerca de 80% dos alunos não aprovam os atos de bullying (3).

A forma como reagem ao bullying permite classificá-los como auxiliares (participam ativamente da agressão), incentivadores (incitam e estimulam o autor), observadores (só observam ou se afastam) ou defensores (protegem o alvo ou chamam um adulto para interromper a agressão) (19).

Muitas testemunhas acabam acreditando que o uso de comportamentos agressivos contra os colegas é o melhor caminho para alcançarem a popularidade e o poder e, por isso, tornam-se autores de bullying (19) . Outros podem apresentar prejuízo no aprendizado; receiam ser relacionados à figura do alvo, perdendo seu status e tornando-se alvos também; ou aderem ao bullying por pressão dos colegas (9).

Quando as testemunhas interferem e tentam cessar o bullying, essas ações são efetivas na maioria dos casos. Portanto, é importante incentivar o uso desse poder advindo do grupo, fazendo com que os autores se sintam sem o apoio social necessário (3,8).

Alvos/autores de bullying

Aproximadamente 20% dos alunos autores também sofrem bullying, sendo denominados alvos/autores. A combinação da baixa auto-estima e atitudes agressivas e provocativas é indicativa de uma criança ou adolescente que tem, como razão para a prática de bullying, prováveis alterações psicológicas, devendo merecer atenção especial. Podem ser depressivos, inseguros e inoportunos, procurando humilhar os colegas para encobrir suas limitações. Diferenciam-se dos alvos típicos por serem impopulares e pelo alto índice de rejeição entre seus colegas e, por vezes, pela turma toda (11,17,21). Sintomas depressivos, pensamentos suicidas e distúrbios psiquiátricos são mais freqüentes nesse grupo (40,41).

Conseqüências

Alvos, autores e testemunhas enfrentam conseqüências físicas e emocionais de curto e longo prazo (8), as quais podem causar dificuldades acadêmicas, sociais, emocionais e legais (12,17). Evidentemente, as crianças e adolescentes não são acometidas de maneira uniforme, mas existe uma relação direta com a freqüência, duração e severidade dos atos de bullying (14).

Pessoas que sofrem bullying quando crianças são mais propensas a sofrerem depressão e baixa auto-estima quando adultos. Da mesma forma, quanto mais jovem for a criança freqüentemente agressiva, maior será o risco de apresentar problemas associados a comportamentos anti-sociais em adultos e à perda de oportunidades, como a instabilidade no trabalho e relacionamentos afetivos pouco duradouros (14,22,35).

O simples testemunho de atos de bullying já é suficiente para causar descontentamento com a escola e comprometimento do desenvolvimento acadêmico e social (11).

Prejuízos financeiros e sociais causados pelo bullying atingem também as famílias, as escolas e a sociedade em geral. As crianças e adolescentes que sofrem e/ou praticam bullying podem vir a necessitar de múltiplos serviços, como saúde mental, justiça da infância e adolescência, educação especial e programas sociais.

O comportamento dos pais dos alunos alvo pode variar da descrença ou indiferença a reações de ira ou inconformismo contra si mesmos e a escola. O sentimento de culpa e incapacidade para debelar o bullying contra seus filhos passa a ser a preocupação principal em suas vidas, surgindo sintomas depressivos e influenciando seu desempenho no trabalho e nas relações pessoais. A negação ou indiferença da direção e professores pode gerar desestímulo e a sensação de que não há preocupação pela segurança dos alunos (42).

A relação familiar também pode ser seriamente comprometida. A criança ou adolescente pode sentir-se traído, caso entenda que seus pais não estejam acreditando em seus relatos ou quando suas ações não se mostram efetivas (43).

O papel do pediatra

Os efeitos do bullying são raramente evidentes, sendo pouco provável que a criança ou adolescente procure o pediatra com a clara compreensão de ser ele autor ou alvo de bullying. No entanto, é possível identificar os pacientes de risco, aconselhar as famílias, rastrear possíveis alterações psiquiátricas e incentivar a implantação de programas anti-bullying nas escolas (17).

Sofrer bullying pode ser um fator predisponente importante para a instalação e manutenção de sinais e sintomas clínicos (Tabela 3). A identificação de algumas dessas queixas pode ser indicativo de maus-tratos perpetrados por colegas, demonstrando a necessária atenção dos profissionais de saúde (3,17,19,24,28).

Tabela 3 -
Sinais e sintomas possíveis de serem observados em alunos alvos de bullying

Existem dúvidas se os danos à saúde precedem o bullying ou se são esses atos que afetam a saúde dos alvos. O estresse causado pela vitimização poderia levar ao surgimento de patologias, mas as crianças e adolescentes com problemas como depressão ou ansiedade podem se tornar alvos de bullying. Poucos estudos investigaram essa relação, mas as duas hipóteses contam com forte apoio (19). A intervenção precoce, tanto com relação aos alvos quanto aos autores, pode reduzir os riscos de danos emocionais tardios (29,43).

Em casos suspeitos, os fatores de risco devem ser sempre investigados e abordados. São eles: características pessoais, influências familiares e comunitárias e problemas escolares (21,40).

Não há métodos diagnósticos que indiquem a existência do comportamento agressivo como fator predisponente a alguma alteração comportamental ou psicossomática. Cabe ao pediatra buscar informações sobre o processo de evolução escolar de seus pacientes, não só avaliando sua capacidade de aprender, como também o desenvolvimento de habilidades relacionadas ao convívio social. Para isso, torna-se necessário perguntar diretamente à criança ou ao adolescente se ele se sente bem na escola, se tem amigos, se testemunha ou se é alvo e/ou autor de agressões físicas ou morais (17,27).

A avaliação psiquiátrica e/ou psicológica pode ser necessária e deve ser garantida nos casos em que crianças ou adolescentes apresentem alterações de personalidade, intensa agressividade, distúrbios de conduta ou se mantenham, por longo período, na figura de alvo, autor ou alvo/autor (11,17,22,29,44).

A prevenção de futuros incidentes pode ser obtida com orientações sobre medidas de proteção a serem adotadas: ignorar os apelidos, fazer amizade com colegas não agressivos, evitar locais de maior risco e informar ao professor ou funcionário sobre o bullying sofrido (17,27).

Entre os autores, as alterações de comportamento, os comportamentos de risco e o consumo de álcool e drogas são vistos com mais freqüência (17). Outros fatores que contribuem para a agressividade e o desenvolvimento de desordens de conduta são as lesões cerebrais pós-trauma, maus-tratos, vulnerabilidade genética, falência escolar, experiências traumáticas, etc. (41).

O tratamento indicado para o autor de bullying deve ser o de habilitá-lo para que controle sua irritabilidade, expresse sua raiva e frustração de forma apropriada, seja responsável por suas ações e aceite as conseqüências de seus atos. Portanto, aqueles pacientes que relatarem situações em que protagonizam ações agressivas contra seus colegas merecem atenção, tanto quanto os que são por eles agredidos (40).

Os identificados como alvos/autores apresentam maior probabilidade de desenvolverem doença mental, devendo ser considerados como de maior risco. Manifestações como hiperatividade, déficit de atenção, desordem de conduta, depressão, dificuldades de aprendizado, agressividade, além de todas as demais já citadas, podem ser encontradas (17,39).

As famílias, tanto dos alvos como dos autores, devem ser ajudadas a entender o problema, expondo a elas todas as possíveis conseqüências advindas do bullying. Os pais devem ser orientados para que busquem a parceria da escola, conversando com um gestor ou um professor que lhes pareça mais sensível e receptivo ao problema (17,28,29).

Como consultores em escolas, atuando nos departamentos de segurança pública ou em associações comunitárias, os pediatras devem esclarecer sobre o impacto que o bullying pode provocar sobre as crianças, adolescentes e escolas e indicar a importância de criar ambientes onde sejam valorizados a amizade, solidariedade e o respeito à diversidade (17).

Medidas preventivas

Avaliar o bom desempenho dos estudantes pelas notas dos testes e cumprimento das tarefas não é suficiente. Perceber e monitorar as habilidades ou possíveis dificuldades que possam ter os jovens em seu convívio social com os colegas passa a ser atitude obrigatória daqueles que assumiram a responsabilidade pela educação, saúde e segurança de seus alunos, pacientes e filhos.

Todos os programas anti-bullying devem ver as escolas como sistemas dinâmicos e complexos, não podendo tratá-las de maneira uniforme. Em cada uma delas, as estratégias a serem desenvolvidas devem considerar sempre as características sociais, econômicas e culturais de sua população.

O envolvimento de professores, funcionários, pais e alunos é fundamental para a implementação de projetos de redução do bullying. A participação de todos visa estabelecer normas, diretrizes e ações coerentes. As ações devem priorizar a conscientização geral; o apoio às vítimas de bullying, fazendo com que se sintam protegidas; a conscientização dos agressores sobre a incorreção de seus atos e a garantia de um ambiente escolar sadio e seguro.

O fenômeno bullying é complexo e de difícil solução, portanto é preciso que o trabalho seja continuado. As ações são relativamente simples e de baixo custo (1,3), podendo ser incluídas no cotidiano das escolas, inserindo-as como temas transversais em todos os momentos da vida escolar.

Deve-se encorajar os alunos a participarem ativamente da supervisão e intervenção dos atos de bullying, pois o enfrentamento da situação pelas testemunhas demonstra aos autores que eles não terão o apoio do grupo. Treinamentos através de técnicas de dramatização podem ser úteis para que adquiram habilidade para lidar de diferentes formas. Uma outra estratégia é a formação de grupos de apoio, que protegem os alvos e auxiliam na solução das situações de bullying (19).

Os professores devem lidar e resolver efetivamente os casos de bullying, enquanto as escolas devem aperfeiçoar suas técnicas de intervenção e buscar a cooperação de outras instituições, como os centros de saúde, conselhos tutelares e redes de apoio social (19).

Aos alunos autores, devem ser dadas condições para que desenvolvam comportamentos mais amigáveis e sadios, evitando o uso de ações puramente punitivas, como castigos, suspensões ou exclusão do ambiente escolar, que acabam por marginalizá-los.

Efetividade do programa

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), os programas que enfatizam as capacidades sociais e a aquisição de competências parecem estar entre as estratégias mais eficazes para a prevenção da violência juvenil, sendo mais efetivos em escolas da educação infantil e do ensino fundamental. Um exemplo de programa de desenvolvimento social que utiliza técnicas comportamentais em sala de aula é aquele implantado para evitar o comportamento prepotente agressivo (bullying) (45).

O Programa de Prevenção do bullying criado por Dan Olweus é considerado como o mais bem documentado e mais efetivo na redução do bullying, na diminuição significativa de comportamentos anti-sociais e em melhorias importantes no clima social entre crianças e adolescentes, com a adoção de relacionamentos sociais positivos e maior participação nas atividades escolares (14,19,21).

Nas escolas onde estudantes tiveram participação ativa nas decisões e organização, observou-se redução dos níveis de vandalismo e de problemas disciplinares e maior satisfação de alunos e professores com a escola (15). No projeto da ABRAPIA, 63,5% dos alunos participaram ativamente de seu desenvolvimento (3).

Os melhores resultados são obtidos por meio de intervenções precoces que envolvam pais, alunos e educadores. O diálogo, a criação de pactos de convivência, o apoio e o estabelecimento de elos de confiança e informação são instrumentos eficazes, não devendo ser admitidas, em hipótese alguma, ações violentas (4,13,15,46).

Conclusão

As conseqüências geradas pelo bullying são tão graves que crianças norte-americanas, com idades entre 8 e 15 anos, identificam esse tipo de violência como um problema maior que o racismo e as pressões para fazer sexo ou consumir álcool e drogas (47).

A inexistência de políticas públicas que indiquem a necessidade de priorização das ações de prevenção ao bullying nas escolas, objetivando a garantia da saúde e da qualidade da educação, significa que inúmeras crianças e adolescentes estão expostos ao risco de sofrerem abusos regulares de seus pares. Além disso, aqueles mais agressivos não estão recebendo o apoio necessário para demovê-los de caminhos que possam vir a causar danos por toda a vida.

Reduzir a prevalência de bullying nas escolas pode ser uma medida de saúde pública altamente efetiva para o século XXI. A sua prevalência e gravidade compelem os pesquisadores a investigar os riscos e os fatores de proteção, associados com a iniciação, manutenção e interrupção desse tipo de comportamento agressivo. Os conhecimentos adquiridos com os estudos devem ser utilizados como fundamentação para orientar e direcionar a formulação de políticas públicas e para delinear as técnicas multidisciplinares de intervenção que possam reduzir esse problema de forma eficaz.

Em um país como o Brasil, onde o incentivo à melhoria da educação de seu povo se tornou um instrumento socializador e de desenvolvimento, onde grande parte das políticas sociais é voltada para a inclusão escolar, as escolas passaram a ser o espaço próprio e mais adequado para a construção coletiva e permanente das condições favoráveis para o pleno exercício da cidadania.

As instituições de saúde e educação, assim como seus profissionais, devem reconhecer a extensão e o impacto gerado pela prática de bullying entre estudantes e desenvolver medidas para reduzi-la rapidamente. Aos profissionais de saúde, particularmente aos pediatras, é recomendável que sejam competentes para prevenir, investigar, diagnosticar e adotar as condutas adequadas diante de situações de violências que envolvam crianças e adolescentes, tanto na figura de autor, como na de alvo ou testemunha.

Mesmo admitindo que os atos agressivos derivem de influências sociais e afetivas, construídas historicamente e justificadas por questões familiares e/ou comunitárias, é possível considerar a possibilidade infinita de pessoas descobrirem formas de vida mais felizes, produtivas e seguras. Todas as crianças e adolescentes têm, individual e coletivamente, uma prerrogativa humana de mudança, de transformação e de reconstrução, ainda que em situações muito adversas, podendo vir a protagonizar uma vida apoiada na paz, na segurança possível e na felicidade. Mas esse desafio não é simples e, em geral, depende de uma intervenção interdisciplinar firme e competente, principalmente pelos profissionais das áreas de educação e saúde.

O bullying pode ser entendido como um balizador para o nível de tolerância da sociedade com relação à violência. Portanto, enquanto a sociedade não estiver preparada para lidar com o bullying, serão mínimas as chances de reduzir as outras formas de comportamentos agressivos e destrutivos (11).


http://www.jped.com.br/conteudo/05-81-S164/port.asp?cod=1403


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sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Prevalência e características de escolares vítimas de bullying

RESUMO

Objetivo: Descrever a prevalência de vítimas de bullying, suas características e os sintomas associados nas áreas emocionais, de conduta, hiperatividade e relacionamento.
Método: Trata-se de um estudo transversal aninhado a uma coorte que avalia transtornos de leitura, escrita e aritmética em 1.075 alunos, da 1ª à 8ª série, de duas escolas públicas de ensino fundamental de um bairro de classe média baixa de Pelotas (RS). Foi utilizado o questionário KIDSCAPE para avaliar a prevalência de bullying e o Strengths and Difficulties Questionnaire para avaliar características comportamentais das vítimas.
Resultados: A prevalência de bullying foi de 17,6%. O tipo de intimidação mais prevalente foi o verbal, seguido do físico, emocional, racial e sexual. Após o ajuste para os fatores de confusão, o bullying se manteve associado com sexo masculino (RP 1,49 IC95% 1,14-1,96), com hiperatividade (RP 1,89 IC95% 1,25-2,87) e problemas de relacionamento com os colegas (RP 1,85 IC95% 1,24-2,76). Entre as vítimas, 47,1% também provocavam bullying.
Conclusão: Este estudo identificou as características comportamentais das vítimas de bullying que podem ser úteis para políticas locais de proteção aos alvos de bullying.

J Pediatr (Rio J). 2011;87(1):19-23: Prevalência, vítimas de bullying, violência infantil, SDQ, KIDSCAPE.


Introdução

O bullying é uma prática encontrada em todas as culturas1 e acarreta sofrimento psíquico, diminuição da autoestima, isolamento, prejuízos no aprendizado e no desempenho acadêmico. Estudos descrevem intervenções bem sucedidas, baseadas em ações multidisciplinares que envolvem os vários níveis de prevenção2,3. O conhecimento sobre as características comportamentais dos estudantes que são alvos das agressões e intimidações pode auxiliar nas ações voltadas à proteção de vítimas de bullying4. Um estudante é considerado vítima de bullying quando é repetidamente exposto a ações negativas de parte de um ou mais estudantes. Estas ações negativas podem dar-se na forma de contato físico, abuso verbal ou com expressões ou gestos rudes. Espalhar rumores e excluir a vítima de um grupo também são formas comuns de violência. Bullying implica em um desequilíbrio de força entre o ameaçador e a vítima, o que caracteriza uma relação de poder assimétrica5. Portanto, os atos repetidos entre iguais (estudantes) e o desequilíbrio de poder são as características essenciais, que tornam possível a intimidação da vítima6. As vítimas, frequentemente, têm um sentimento de insegurança que as impede de solicitar ajuda. Fazem poucas amizades, são passivos e não reagem aos atos de agressividade. Muitos passam a ter prejuízos no seu desempenho escolar, recusam-se a ir para a escola e às vezes simulam doenças. Não raro trocam de colégio ou abandonam os estudos7. A presença de transtornos mentais em vítimas de bullying também é evidenciada. Estudos apontam que crianças vitimizadas podem apresentar risco de suicídio, depressão, ansiedade e problemas de relacionamento6,8. Devido à presença de transtornos comportamentais e de aprendizagem, são necessárias estratégias de intervenção desenvolvidas a partir do conhecimento dos tipos e das prevalências de bullying nas diferentes comunidades9,10. Este estudo teve como objetivo descrever a prevalência e as características das vítimas de bullying em duas escolas públicas.

Métodos

Este estudo foi realizado com 1.075 estudantes de duas escolas públicas de ensino fundamental do bairro Fragata de Pelotas (RS), uma municipal e outra estadual. Todas as crianças dessas escolas, entre a 1ª e a 8ª série, foram incluídas no estudo.

Nossa amostra é de conveniência porque escolhemos escolas vizinhas à Faculdade de Medicina. Nosso estudo maior prevê intervenções que só se viabilizam em escolas próximas ao nosso ambulatório. Foram realizadas entrevistas domiciliares, por entrevistadoras treinadas e supervisionadas por dois epidemiologistas. Os estudantes responderam ao questionário KIDSCAPE, utilizado pela instituição inglesa de mesmo nome para identificação de bullying11. Para a definição do desfecho, foi perguntado quantas vezes o sujeito sofreu algum tipo de intimidação, sendo considerado bullying quando aconteceu mais de uma vez no último mês. A idade foi categorizada entre 6 e 8 anos; 9 e 11 anos; e 12 e 18 anos. Em relação ao local onde aconteceu, foram considerados: indo ou vindo da escola; no pátio; nos banheiros da escola; na sala de aula; no refeitório da escola; ou em outro lugar. Quanto às consequências, foram classificadas em: não teve consequências; algumas consequências ruins; terríveis consequências; e fez você mudar de escola. O tipo de vitimização foi classificado em: físico; verbal; emocional; sexual; ou racista. Por fim, foi perguntado se já intimidou, agrediu ou assediou alguém. Para avaliação de fatores emocionais e comportamentais da criança, foi utilizado o questionário de capacidades e dificuldades denominado Strengths and Difficulties Questionnaire (SDQ)12 em crianças e pais. O SDQ é utilizado para triagem de problemas de saúde mental em crianças dos 4 aos 17 anos. Este instrumento foi aplicado por entrevistadoras aos pais de crianças menores de 11 anos. Acima desta idade, foi aplicado nos pais e nas próprias crianças. O instrumento é composto por 25 itens, que são divididos em cinco subescalas, com cinco itens cada uma, resultando em escores de sintomas emocionais, problemas de conduta, hiperatividade, problemas de relacionamento e comportamento pró-social10. Os itens das quatro primeiras escalas geram um escore total de dificuldades.

Foram calculadas as razões de prevalência com intervalo de confiança de 95%. A análise multivariada foi realizada utilizando a regressão de Poisson, mais adequada para a análise de estudos transversais com desfechos binários de regressão logística, uma vez que a razão de prevalência é mais fácil de interpretar e comunicar a não especialistas que o odds ratio13. Os dados foram digitados no programa EPI-INFO, com dupla entrada e a análise ajustada foi realizada no Stata 9.

Este estudo é parte de um estudo maior que tem como objetivo identificar as prevalências de transtornos de desenvolvimento do aprendizado (dislexia e discalculia), transtornos comportamentais e fatores estressores nas famílias e professores. Tem o patrocínio da Secretaria Estadual de Saúde do Rio Grande do Sul, através de seu Programa de Prevenção da Violência e da UNESCO.

Todos os responsáveis pelos alunos assinaram um termo de consentimento livre e informado, manifestando sua concordância em participar do estudo, e o projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética da Universidade Federal de Pelotas (UFPEL), sob o protocolo nº 093/09.

Resultados

Das 1.119 crianças matriculadas nas duas escolas, realizamos 1.075 entrevistas domiciliares, com uma perda de 4%.

Por não existir diferença estatisticamente significativa entre as duas escolas nas características socioeconômicas e de instrução materna, foi considerada, para efeito da análise, a soma dos alunos das escolas. Em nossa amostra, 52,7% eram do sexo masculino. Do total de estudantes, 28,5% estavam entre 6 e 8 anos de idade; 32%, entre 9 e 11 anos; e 39,6%, entre 12 e 18 anos. Cursavam as quatro primeiras séries, 56,5% dos alunos; e o restante, da 5ª à 8ª série.

A prevalência de estudantes que sofreram bullying foi de 17,6%. A maioria das agressões aconteceu no pátio da escola (55,1%). Quanto ao tipo de intimidação, 75,1% foram verbais, 62,4% físicas, 23,8% emocionais, 6,3% racistas e 1,1% sexuais. Dentre as vítimas, 47,1% revelaram já ter provocado bullying na escola.

A Tabela 1 mostra, na análise bruta, o sexo masculino, problemas emocionais, de conduta, de hiperatividade e de relacionamento associados à vitimização ao bullying. Na análise ajustada, a associação se manteve com sexo do aluno (p = 0,003), sendo mais prevalente entre os meninos (RP 1,49 IC95% 1,14-1,96). Os domínios hiperatividade (p = 0,002) e problemas de relacionamento com os colegas (p = 0,003) do SDQ também se mantiveram associados ao desfecho. Os alunos que pontuaram hiperatividade no SDQ (RP 1,89 IC95% 1,25-2,87) e com problemas de relacionamento com os colegas (RP 1,85 IC95% 1,24-2,76) tiveram uma maior probabilidade de estarem associados à vitimização.

Discussão

A prevalência de 17,6% encontrada em nossas escolas está próxima das encontradas em estudos realizados em outros países e no Brasil. Nos estudos pioneiros de Olweus, em torno de 15% dos estudantes suecos estavam envolvidos como vítimas ou provocadores de bullying2. Um estudo realizado em 2002, com 5.875 estudantes de 5ª a 8ª séries, de 11 escolas localizadas no município do Rio de Janeiro, revelou que 16,9% dos estudantes sofreram bullying7. Estes achados reforçam o caráter universal do problema, porém uma limitação desse tipo de comparação pode decorrer das diferentes definições de bullying14. A maior prevalência de vítimas de bullying entre os meninos é compatível com outras investigações15-17. Uma possível explicação pode ser dada no sentido de que os meninos sofrem bullying de uma forma física mais direta, enquanto que as meninas, de forma verbal e exclusão, o que é menos visível e percebido.

Estudos mostraram que a prevalência de bullying diminui à medida que a idade aumenta1,15,17, o que também foi verificado em nosso estudo.

Em relação ao tipo de bullying, o verbal foi o mais prevalente. A utilização de apelidos, muitas vezes pejorativos ou que se refiram a determinada característica física ou fragilidade das vítimas, pode explicar o predomínio desse tipo. Este achado está de acordo com outros autores em que a forma verbal foi a mais prevalente, seguida da física18,19. Apenas dois estudantes (1,1%) relataram terem sido vítimas de ameaças ou assédio sexual; estes achados contrastam com dois estudos americanos que encontraram resultados em que 27% dos estudantes foram alvos frequentes de assédio sexual durante seus anos escolares20. Uma possível explicação é que o assédio ou ameaça sexual, expresso por palavras, tenha sido interpretado como do tipo bullying verbal.

Na análise dos fatores comportamentais associados às vítimas de bullying, após análise ajustada, permaneceram associados ao desfecho, os estudantes com problemas de relacionamentos e hiperatividade. Estes achados são plausíveis com as características de parte das crianças vítimas de bullying que tendem a ser tímidas e com dificuldades de relacionamento com seus pares. Já a associação com a hiperatividade pode corresponder a outro tipo de vítima, com um perfil provocativo. Neste tipo, a vítima exibe uma combinação de ansiedade e traços agressivos e, às vezes, provoca colegas por sua hiperatividade e comportamento irritante2. Este tipo também pode explicar o achado de nosso estudo de que 47,1% dos que eram vítimas também provocavam bullying, o que é compatível com outro estudo em que metade das vítimas também tinha atitudes agressivas com seus colegas21. É possível que não exista um separador absoluto entre vítimas e provocadores de bullying. Esse tipo de resposta pode acontecer não só por suas características comportamentais, mas como mecanismo de defesa. Uma das limitações deste estudo foi a impossibilidade de verificar o efeito da causalidade. Por ser um estudo transversal, não foi possível afirmar se as crianças hiperativas e com problemas de relacionamento sofrem mais bullying ou manifestam esses comportamentos por serem vitimizadas. Outra limitação deste estudo é a nossa amostra de conveniência, que englobou duas escolas vizinhas à Faculdade de Medicina, o que limita o poder de generalização e de inferência a partir de nossos achados. Em relação ao instrumento utilizado para identificação de vítimas de bullying (KIDSCAPE), não existe uma adaptação à população brasileira, apenas uma tradução, o que limita nossos resultados relacionados à prevalência.

O bullying pode ser precursor de transtornos de personalidade antissocial e outros comportamentos violentos na adolescência e idade adulta22. É possível que programas de intervenção precoce possam ter algum papel na prevenção do comportamento antissocial, delinquente e criminoso23. Os programas e intervenções, em nosso meio, devem considerar a intersecção entre provocadores e vítimas.

Para o melhor entendimento da violência no Brasil, são necessários estudos sobre a história natural dos transtornos de comportamento disruptivos, abrangendo outras variáveis ligadas a características familiares24 e outras exposições25; e também entender se, no seu curso, há algum período de janela em que os comportamentos possam ser mais facilmente modificados. Há necessidade de estudos amplos sobre bullying, de delineamento longitudinais e amostras representativas, para que se possam traçar políticas mais amplas de prevenção e redução de danos em crianças vítimas de violência.

Conclusão

Nosso estudo identificou as características comportamentais de estudantes vítimas de bullying que podem ser úteis para políticas locais de intervenção e fonte de hipóteses para futuros estudos.

Agradecimentos

Os autores desejam agradecer ao Secretário Estadual de Saúde do Rio Grande do Sul (SESRS), Osmar Terra, que compartilha conosco a preocupação de estabelecer políticas de prevenção de violência baseada em evidências e foi o grande incentivador deste estudo. Agradecemos aos familiares dos estudantes, às professoras da Escola Estadual Lima e Silva e da Escola Municipal Nossa Senhora de Lourdes, a Jane da Lacorte, coordenadora do Programa de Prevenção da Violência da SESRS, a Antônio Bosko, da SESRS, e à UNESCO pelo financiamento do Programa Para Aprender Melhor.

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Autores:

Danilo Rolim de MouraI; Ana Catarina Nova CruzII; Luciana de Ávila QuevedoIII
IMestre, Medicina e Ciências da Saúde/Neurociências. Pediatra, Departamento Materno Infantil, Faculdade de Medicina, Universidade Federal de Pelotas (UFPEL), Pelotas, RS. Coordenador, Programa Para Aprender Melhor, Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), Programa de Prevenção à Violência (PPV), Secretaria da Saúde do Rio Grande do Sul (SESRS), UFPEL, Pelotas, RS. Chefe, Ambulatório de Transtornos do Desenvolvimento e da Aprendizagem, Núcleo de Neurodesenvolvimento Prof. Mario Coutinho, UFPEL, Pelotas, RS.
IIMestre, Saúde e Comportamento. Psicóloga. Coordenadora, Programa Para Aprender Melhor, UNESCO, PPV, SESRS, UFPEL, Pelotas, RS. Ambulatório de Transtornos do Desenvolvimento e da Aprendizagem, Núcleo de Neurodesenvolvimento Prof. Mario Coutinho, UFPEL, Pelotas, RS.
IIIMestre, Saúde e Comportamento. Psicóloga. Coordenadora, Programa Para Aprender Melhor, UNESCO, PPV, SESRS, UFPEL, Pelotas, RS, Brazil. Programa de Pós-Graduação em Saúde e Comportamento, Universidade Católica de Pelotas (UCPEL), Pelotas, RS.

Fonte: http://www.jped.com.br/conteudo/11-87-01-19/port.asp?cod=2131